Fundada Suspeita e Abordagem Policial: Orientações Jurisprudenciais para Profissionais de Segurança Pública

Fundada Suspeita e Abordagem Policial: Orientações Jurisprudenciais para Profissionais de Segurança Pública

A Necessidade de Equilíbrio entre Eficácia e Legalidade

A atividade de segurança pública, pilar da ordem e da paz social, exige que os profissionais atuem com eficácia e, simultaneamente, com estrita observância aos direitos fundamentais e aos limites legais. A abordagem policial e a busca pessoal (revista) são ferramentas essenciais para a prevenção e repressão, mas seu uso desregrado pode gerar a anulação de todo o trabalho e, até mesmo, responsabilidade para o agente.

O conceito de Fundada Suspeita, previsto no Artigo 244 do Código de Processo Penal (CPP) [1], é o principal balizador legal para a realização da busca pessoal sem mandado judicial. Este documento visa apresentar, de forma didática e com foco nas decisões mais recentes dos Tribunais Superiores (Supremo Tribunal Federal – STF e Superior Tribunal de Justiça – STJ), os critérios que definem a Fundada Suspeita e as consequências práticas de sua inobservância para a atividade policial.

 

  1. O Conceito de Fundada Suspeita e a Exigência de Objetividade

O Artigo 244 do CPP estabelece que a busca pessoal independerá de mandado:

“quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar.”

A expressão “fundada suspeita” é um conceito jurídico indeterminado. Por não ser definida de forma exaustiva pela lei, seu significado é preenchido pela jurisprudência, que tem sido cada vez mais rigorosa na exigência de elementos concretos e objetivos.

1.1. A Distinção entre Juízo Subjetivo e Elementos Objetivos

A principal diretriz dos Tribunais Superiores é clara: a Fundada Suspeita não se confunde com a mera intuição, impressão subjetiva ou com a discricionariedade do agente. Ela deve ser um juízo de probabilidade baseado em fatos perceptíveis e verificáveis que tornem altamente provável a posse de ilícitos [2].

 

O que NÃO configura Fundada Suspeita (Regra Geral)O que DEVE configurar Fundada Suspeita (Requisito)
Mera Intuição/Impressão: Baseada apenas na experiência do agente.Juízo de Probabilidade: Fatos que indicam a alta probabilidade de posse de ilícitos.
Características Pessoais: Cor da pele, vestimenta, condição social, etnia ou aparência.Comportamento Específico e Desviante: Ação clara e atípica que sugira a prática de crime (ex: arremessar objeto, tentar esconder algo).
Estar em Local de Risco: Estar em local conhecido como “ponto de tráfico” ou em horário noturno, de forma isolada.Vínculo com Crime Anterior: Informação prévia e verificável de que o indivíduo corresponde à descrição de um suspeito de crime recente.
“Nervosismo” Isolado: Reação emocional natural ao ser abordado por autoridade [3].Denúncia Anônima Qualificada: Informação anônima detalhada e corroborada por diligências preliminares [4].

Diretriz Central do STJ: A Fundada Suspeita exige a demonstração de elementos concretos e objetivos que justifiquem a busca, sob pena de nulidade da prova. A ausência de elementos concretos configura o que a doutrina chama de “fishing expedition” (pesca probatória), prática vedada pelo ordenamento jurídico [5].

 

  1. A Jurisprudência Recente dos Tribunais Superiores

As decisões do STJ e do STF têm delimitado de forma clara a atuação policial, buscando evitar a violação de direitos em abordagens rotineiras.

 

2.1. O “Nervosismo” e a Fuga

Embora o tema tenha gerado alguma oscilação no STJ, a posição majoritária e mais garantista, especialmente da Sexta Turma, é de que o mero nervosismo ou a fuga isolada ao avistar a polícia não são suficientes para configurar a Fundada Suspeita.

A reação de nervosismo ou a tentativa de fuga podem ser consideradas elementos circunstanciais, mas devem estar acompanhadas de outros fatos objetivos que reforcem a suspeita de posse de ilícitos. Por exemplo, a fuga associada ao descarte de um objeto suspeito ou a fuga após o recebimento de uma denúncia qualificada.

 

2.2. O Uso da Denúncia Anônima

A denúncia anônima, por si só, não autoriza a abordagem e a busca pessoal.

O STJ consolidou o entendimento de que a denúncia anônima só configura Fundada Suspeita se for qualificada, ou seja:

  • Detalhada: Fornece informações precisas (características do suspeito, placa do veículo, local exato, etc.).
  • Corroborada: A equipe policial deve realizar diligências preliminares (monitoramento, campana, checagem de informações) que confirmem a veracidade e a probabilidade da informação antes de realizar a abordagem [4].

 

Exemplo Prático: Receber uma denúncia de que “um homem de camiseta vermelha está vendendo drogas na Rua X” não autoriza a abordagem imediata. É necessário que a equipe observe o indivíduo praticando atos que corroborem a denúncia antes de proceder à busca pessoal.

 

2.3. Busca Veicular e o Contexto de Localidade

O fato de um veículo estar em mau estado de conservação ou de o condutor não portar documentos não configura Fundada Suspeita para a busca veicular [6].

Da mesma forma, estar em um local conhecido como “boca de fumo” ou “ponto de risco” não é, isoladamente, elemento suficiente. A abordagem e a busca só se justificam se houver um comportamento ativo do indivíduo ou elementos visíveis que o vinculem à atividade criminosa no momento da abordagem (ex: visualizar drogas ou armas no interior do veículo, cheiro de entorpecentes, ou informação prévia de que o veículo foi usado em crime).

 

  1. Consequências da Abordagem Ilegal: Nulidade da Prova

Para o profissional de segurança pública, a principal razão para a observância rigorosa da Fundada Suspeita é a nulidade das provas obtidas em caso de ilegalidade da abordagem.

O sistema jurídico brasileiro adota a Teoria dos Frutos da Árvore Envenenada (Fruits of the Poisonous Tree).

Teoria dos Frutos da Árvore Envenenada: Se a prova inicial (a abordagem/busca) é ilegal (a “árvore envenenada”), todas as provas dela decorrentes (o ilícito encontrado, a confissão, etc. – os “frutos”) também serão consideradas nulas e não poderão ser usadas no processo [7].

 

Impacto Prático e a Cadeia de Custódia:

  • Perda da Prova: Se um indivíduo é abordado sem Fundada Suspeita e, durante a revista, é encontrado um objeto ilícito, a prova será declarada ilícita pelo juiz.
  • Absolvição: O processo criminal será arquivado ou o réu será absolvido, não por falta de materialidade, mas por ilegalidade na obtenção da prova.
  • Proteção da Atuação: O registro detalhado e objetivo da Fundada Suspeita é o que protege a atuação policial e garante a validade da prova, assegurando que o trabalho não seja perdido no âmbito judicial.

 

  1. O Dever de Documentação e Registro (O Ponto Chave)

O elemento mais importante para o profissional de segurança pública é a documentação da Fundada Suspeita. A suspeita deve ser registrada de forma detalhada e objetiva, pois é o único meio de comprovar a legalidade da atuação em juízo.

 

Checklist de Documentação para a Fundada Suspeita:

 

Elemento ChaveDescrição e Exemplo de Registro
Fatos ObjetivosDescrever a conduta específica do abordado. Ex: “O indivíduo, ao notar a presença da viatura, jogou um pequeno pacote branco na lixeira e tentou se evadir”
Informações PréviasSe houver denúncia, registrar o teor exato e quais diligências preliminares foram feitas para corroborá-la. Ex: “Denúncia anônima informou que o veículo X, placa Y, estaria transportando entorpecentes, o que foi confirmado pela observação de volumes suspeitos no banco traseiro”
ContextoRegistrar o local, horário e as condições ambientais que contribuíram para a suspeita.
Exclusão de SubjetividadeEvitar termos vagos como “atitude suspeita”. Se o nervosismo ocorreu, ele deve ser citado como um elemento adicional aos fatos objetivos [3].

Lembrete Fundamental: A Fundada Suspeita deve ser anterior à busca. O que for encontrado após a busca não pode ser usado para justificar a própria busca. A motivação deve ser clara e prévia.

A Fundada Suspeita é o ponto de equilíbrio entre a prerrogativa de agir do Estado e a garantia dos direitos individuais. Ao basear a abordagem em elementos concretos, objetivos e devidamente registrados, o profissional de segurança pública não apenas cumpre seu dever constitucional, mas também assegura a validade jurídica de seu trabalho, fortalecendo a persecução criminal e a credibilidade da instituição.

Deixe um comentário